E os seus olhos - quase sem brilho - cortinados pela trama do tempo muito alva.
Por entre os dedos, a caneta hesitava em sua escrita.Faltava-lhe firmeza.
Inevitável relembrar o que outrora fazia-se tão hábil.
Quando pelo papel deslizava sob impávidos movimentos harmoniosos e orquestrados.
Nos lábios, um longo suspiro atroz.
E algum lamento emudecido.
Não vi seu sorriso... Já não o tinha mais?
Na testa, um franzir dos descontentes, entediados e descrentes. Na memória da carne, vestígios de amor ateu, marginal e persistente.
Nas paredes, seus inseparáveis e coloridos talismãs.
Aquele era o Tempo. Que, sem remorso, esvaia-se impiedoso por aquelas - por agora - tão imprecisas mãos.
O tempo personificado frente aos meus perplexos olhos. Olhava-me Ele com ares de irremediável vacilo, paúra terçã, vergonha absoluta.
Demudado num corpo de indecifrável, decadente e indelével Esfinge.
No entanto, apesar do tempo, apesar de tudo, Aquela Casa mantinha imaculado o seu frescor. E, mais ainda, íntegros os seus rastros, emblemas, odores e traços... Delineados no cheiro que tinha aquele quintal. No bolo de milho a assar. No Menino que indo buscar o jornal, deslumbrava-se com a chuva que colorida escorria pelo vitral. E com as carambolas que pousavam a pintar o enlodado chão.
A cozinha com aromas de alho, coentro, fermento e sal. Raios de lua refletidos à beira do portal. Estórias de 'Comadre Florzinha'. Sabiá em sua gaiola a cantar.
Meninas rindo à toa. Panos de prato no varal. Cachorro manco e amuado. Papagaio ranzinza e pornográfico. Restos de um Carvanal. Crônicas em tom Outonal.
'Dama da Noite' a repousar sob o sol.
A sombra do fruta-pão.
Aromas de alecrim.
Nuances da flor do jasmim.
Lamento de lavadeira misturado à água fria e sabão.
Máquina de coser faltando um pedaço.
Estilhaços esquecidos do passado.
O gosto que tinha a romã.
As rosas daquele jardim...
Percebi que tudo aquilo permanecia intacto, como se alheio à passagem do tempo.
Despedi-me. Ali, um pouco de mim ficou. Deixei-me. Eternizou-se.
Desci as escadas. Coração apertado, esfacelado, aos frangalhos... E nos meus olhos, tatuava-se, naquele instante, a incerteza de que nos veríamos de novo.
Marejei, foi inevitável.
Deixei a 'Casa de Dona Sinhá' com seu filho lá dentro guardado. Parecia um menino: franzino, irrequieto, acuado. Parecia que clamava ao tempo. Indagava-o.
Maldizia-o, inconformado.
[ Adriana Gil, in 'Ontem, em Visita a Um Grande Amigo do Meu Pai: ALEX' ]
É por isso que eu gosto da blogosfera - sempre corro o risco de encontrar blogs cheios de beleza, como esse aqui. Gostei muito daqui e também das suas fotos no Fickr. Identifico-me muito com o seu olhar. Também te adicionei lá!
ResponderExcluirSeja sempre bem-vinda ao compartimento Secreto.
Saudações,
Margot Félix
Margot,
ResponderExcluirTanto na imensidão Blogosférica, quanto no vasto universo Flickirano, os teus
'compartimentos', além de secretos, guardam grandes e inspirados achados, capazes de emocionar e fazerem-se registrados - ad eternum - na memória das mais exigentes retinas...
Confesso que as tuas fotos do Flickr também muito me disseram... Por lá ter encontrado sensíveis e inusitados registros de fabulosos e fálicos antúrios cor-de-rosa...; detalhes simétricos e poéticos de um velho tamborete...;sombras que insinuam meandros...; contornos e recôncavos a faiscar sob alguma preciosa luz... Enfim, emblemas - tão teus - secretamente guardados em compartimentos de infinita beleza...
És muito bem vinda às minhas águas!
Um xero!
Adriana
lindos versos...
ResponderExcluirTua luz é tão doce , é tão envolvente, musical, este teu olhar é ímpar. Me desculpe , você já notou que eu não resisto. É mui encantador o teu blog. Sonoros aplausos!!!
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